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No âmbito social a palavra 

 significa empoderamento

Em São Paulo, a poesia feminina busca força e representatividade através do movimento dos saraus.

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Por Letícia Neres e Gabriela Ramos.

Em mais uma singela noite da capital paulista um conjunto de vozes femininas se enaltecem e declamam “As minas na ativa, as minas na ação. Dominação, Dominação!”. Esse o lema de um grupo de mulheres com idades variadas do qual Nayara Gabriel faz parte, e dentro de um círculo formado pelas integrantes, ela se enche de sentimento e recita: “O que eu quero ainda é difícil de explicar mas por todas que já foram silenciadas eu sei que um dia eu chego lá, só que devagar e muito mais atenta. De quebrada em quebrada eu vejo vários conflitos internos transformados com papel e caneta”.

A demonstração poética tem sido um grande objeto de expressão e denúncia para diversas causas dentro da sociedade atual, trazendo esperança e representatividade para os seus escritores, que acreditam que a palavra tem o dom de reformular padrões questionáveis como a predominância do machismo e diversos preconceitos que ainda existem no âmbito social. São Paulo está recheado de poemas que enfeitam suas ruas ao serem declamados, poemas que divergem a ideia precoce de que a poesia carrega apenas uma abordagem romantizada e está sempre sendo escrita por um homem. “Eu acho que o mundo sempre espera ouvir ou ler coisas que foram escritas por um cara e não por uma mulher”, opina Mayana Vieira, poeta que mora no Grajaú, zona sul da capital.

Para o grupo composto de poetisas, batizado de Dominação, um conjunto de versos tem sido sinônimo de força e empoderamento para muitas mulheres que ganham voz através de suas obras, sendo esse o objetivo maior da iniciativa. Ingrid Martins, uma das fundadoras do grupo explica que a ideia de formar o Dominação veio a partir do momento que notou em grupos semelhantes a hegemonia masculina. “Em todas as batalhas a maioria dos inscritos eram homens e tipo as pessoas que frequentavam o role eram homens também, então pensamos, porque não fazer uma só de mina? Quando a gente começou era só uma vez por mês e acontecia de sábado, mas não enchia, não encostava muitas pessoas assim. E aí esse ano a gente decidiu fazer toda semana, assim como outros grupos que tem aqui em São Paulo, a maioria é toda semana. Então toda semana tem mina pra caramba, seja mandando poesia no naipe aberto ou batalhando, sendo assim a gente viu que precisava mesmo fazer uma batalha só de mina.”Ingrid ressalta o poder da palavra, afirmando que o discurso ou a própria poesia são primordiais na luta de qualquer causa. “No Dominação, todo mundo vem

pra falar, e sabe que aqui vão ser ouvidos.

Então eu acho que a palavra é fod**”, explica a fundadora.

Já grajaúense Mayana, demonstra o sentimento ocasionado pelo poder vindo da escrita de seus poemas. “A palavra me livra de mim mesma, é por causa da palavra que escrevo e grito que eu ainda estou viva”, declara ela.

Mayana ainda ressalta: “Os poemas trazem reflexão. E eu acho que a partir da reflexão as desconstruções nascem”, exemplificando a relevância que a poesia representa para ela e para muitas outras mulheres, o que retoma a roda formada no Dominação, próximo à estação São Bento, onde Nayara citada ao início desta reportagem continua dizendo: “Isso aqui é baseado em fatos reais, nossa luta é diária e nós queremos mais. Em menos de dois minutos minha mente fica lenta mas eu não vou recuar eu vou explodir com esse sistema, vai ter que aceitar e segurar muita treta, porque se eu pudesse escolher até minha alma era preta”, finalizando seu discurso e deixando evidente que a poesia "marginal" como chamam é usada para defender diversas causas sociais como o racismo e a homofobia, sendo também mencionado por Mayana, que afirma: "Sou mulher, sou negra, periférica e lésbica. Sou uma mulher de luta”, apresentando o cenário vivido por muitas delas.

Boa parte dessas poetas estão rodeadas de preconceitos por serem parte de um nicho específico dentro da sociedade, ou seja, são mulheres, negras, periféricas e vindas muitas vezes de classes baixas, por isso o poder de voz gerado por suas obras as permitem dialogar e provocar os padrões sociais que lhes são impostos, como no caso de Nayara Gabriel que narra a sua realidade e crê que as poesias são asas que a permite expressar tudo aquilo que a sociedade a bloqueia.

E assim como Nayara, a estudante de ciências sociais e também poeta Bianca Guimarães, afirma que a poesia como outras expressões artísticas são elementos preciosos no combate a muitas adversidades, uma vez que para ela exista na sociedade um sistema que abre espaço para o preconceito e para marginalização das minorias periféricas, causando uma indução ao crime, ao consumo de drogas e a prostituição. “A gente conseguir denunciar isso na poesia é precioso. Então é muito precioso uma mulher na poesia, é muito precioso um cara preto, uma mina preta, viado, sapatão tomando mesmo esses espaços. É uma forma de denúncia, de empoderamento, é uma forma de dar voz mesmo, sabe?", explica a estudante. Todas essas poetas relatam que o processo de criação de suas obras vem a partir do sentimento de repressão, de indignação e

Fotos Gabriela Ramos e Letícia Neres.

angústia sentida por elas, gerado pelo sistema de cultura machista, cujo é mencionado por Bianca, que volta a dizer: “Pra mim foi uma quebra de silêncio muito grande, sabe? Era um lugar onde eu podia depositar o que eu queria falar, o que eu não falei na vida inteira justamente por esse silenciamento, por ser mulher e tudo mais. Todas essas questões opressivas eu coloquei muito na poesia e vários outros sentimentos, porque a poesia não é um grito o tempo todo, mas ela também vai falar de amor, ela também vai falar de afeto, e enfim todas essas coisas. Eu acho que é um lugar muito particular”, opina.

Entretanto para os grandes ambientes literários e para muitos críticos, a poesia marginal pode não conter todo o penhor relatado por quem a escreve, como explica a professora na Universidade Cruzeiro do Sul, Sônia Berti: “Eu acho que elas continuam sendo mal vistas, mesmo pelo próprio movimento do sarau que também não é reconhecido pelos grandes ambientes literários, pois a poesia marginal, por ser um grupo a parte, pequeno, com um linguajar específico num movimento que é basicamente precário no ponto de recursos e condições, é o que a torna por si só uma marginalização desse movimento em relação a sociedade e aquilo que se considera adequado, se considera bonito, se considera polido”.

Esta forma de expressão e oposição através da palavra não é algo recente dentro da sociedade assim como o empenho feminino para se impor frente a essas adversidades. Sonia ainda, explica que a dificuldade das mulheres em ter espaço igualitário com o sexo oposto na sociedade vem sendo denunciada através da poesia marginal desde os meados da década de 70 através das vanguardistas. “Elas buscavam uma identidade, elas buscavam um espaço de fala e de comunicação, era um grito de voz no momento em que você não tem a voz. No meio da ditadura a gente não tinha voz e essas pessoas, essas poetisas tentavam essa voz, não só para esse movimento feminista, como para uma voz do povo, uma voz de quebra desse regime que estava oprimindo a todos. Então nesse regime de opressão o feminismo quer se movimentar, aparecer e dar mais destaque a mulher, e vamos combinar que não é de agora que a mulher vem sendo oprimida, não foi na década de 70, e sim durante toda a história da humanidade a mulher é denegrida em relação à figura masculina. A mulher está sempre buscando voz e continua ainda hoje buscando espaço, mas ainda não temos a igualdade, ainda não somos seres, somos homens e mulheres, quando formos seres, seremos iguais.”, comenta a também doutora em Semiótica e Linguística Geral.

A professora porém acredita que

importância do movimento literário feminista é necessário ao declarar que: “É extremamente válido mesmo assim. São mulheres corajosas que estão defendendo um ideal, se colocando, colocando a cara a tapa como se fazia na poesia marginal da década de 70. Você se arrisca, mas ao se arriscar a fazer isso você também garante uma voz, você não está muda você está garantindo uma possibilidade de fala, uma possibilidade de visão, eu acho que todo movimento é válido”, indo a diante Sônia determina que para as poetas de hoje em dia é necessário muita força de vontade e disposição para continuar a defender o que acreditam. “É necessário muita garra porque se a gente pegar algumas poetisas brasileiras, elas brigaram muito para conseguir um espaço. A Cecília Meireles por exemplo, minha poetisa preferida, é uma poetisa extremamente conhecida mas sempre houve os grandes nomes masculinos que se sobressaiam em relação a elas, então a mulher está sempre marginalizada. Dentro do romantismo por exemplo algumas com pseudônimo masculino porque não podiam escrever com nome feminino porque o nome feminino não era bem visto então a mulher está sempre a margem não é? Mesmo quando Rousseau por exemplo, no renascimento, vai dizer que a mulher tem que voltar as agulhas e a cozinha e não pode discutir política, não pode aprender a ler e a escrever, não pode fazer grandes discursos, então nós estamos o tempo todo lutando contra isso e agora nós estamos num momento, pelo menos aqui no Brasil e nos grandes centros em que a gente tem uma possibilidade de expressão garantida, não que a gente tenha o reconhecimento adequado, mas a gente tem um espaço para falar, a gente tem um espaço garantido para falar, volto a insistir não que esse espaço seja totalmente reconhecido mas temos um espaço e temos que lutar por isso,  acho que esse é um espaço totalmente válido e temos que fazer jus a esse espaço e ampliar cada vez mais com mais produções, com mais movimentos, movimentos que são voltados para pessoas de pouca cultura, baixa condição socioeconômica e até movimentos para uma cultura mais elevada e condições socioeconômica melhor, mais estabelecida porque em todos os níveis da sociedade há uma restrição contra a mulher, a mulher sofre violências domésticas em quaisquer nível sociocultural e econômico então que essas restrições precisam ser vencidas com a força da mulher, com a coragem da mulher de se colocar e falar. É uma luta bastante guerreira, com muita coragem, a coragem que quase nenhum homem tem, mas a mulher tem de ter para conseguir fazer isso. Somos guerreiras”, conclui.

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