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A nova cara do teatro

As técnicas aplicadas às artes cênicas mudaram, os espaços dedicados a elas também.

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Por Marta Miranda Aragão
e Fabiano Campos

Já pensou em comer algo durante um espetáculo? E em tomar uma cervejinha assistindo a uma peça? Pois você pode! No Teatro de Contêiner, por exemplo, existe até a opção de comprar os quitutes na lanchonete da própria casa, que oferece opções vegetarianas e veganas pelas quais você paga o valor que achar justo e é atendido pelos próprios membros da Cia Mungunzá, idealizadores do projeto. A intenção, segundo a companhia, é desinstitucionalizar todas as relações burocráticas que acabam por afastar parte do público e deixam menos divertido o momento de lazer.

A companhia surgiu em 2008, mas foi em 2016 que o grupo conseguiu tirar do papel um projeto idealizado pelos próprios integrantes, dando vida ao Teatro de Contêiner, que como o próprio nome já deixa claro, é formado pela junção de vários contêineres. A instalação foi fixada num terreno ocupado na região da Luz e hoje funciona mediante um “Termo de Cooperação” junto ao Poder Público Municipal. Marcos Felipe, integrante da companhia e educador, explica como foi o processo: “Fizemos um mapeamento e chegamos nesse terreno, então nós enviamos um ofício pra prefeitura, falando que a gente queria o terreno por dois meses, pra fazer um festival de performance chamado ‘Arquiteturando a Cidade’. Eles falaram ‘beleza, por dois meses o terreno é de vocês’, aí a gente fez o teatro em dois meses. Quando acabou o projeto, nós falamos que tínhamos um teatro pronto e que não iríamos mais sair”.

Mas se hoje existem espaços como esse, que transgridem o formato tradicional do teatro, isso se deve às companhias mais antigas, que foram

perseguidas resistiram em um obscuro período da história brasileira. Desde o cidade de São Paulo, muitas companhias foram atacadas e censuradas, devido, ou ao conteúdo de suas peças – que em sua maioria continham críticas ao regime vigente – ou à forma com que elas eram apresentadas, no caso do teatro experimental. Grupos como o Teatro de Arena e o Teatro Oficina – ainda existentes – que sofreram duras repressões nesse período obscuro, deixaram um legado importante de luta por meio da arte.

A Cia Mungunzá tem seguido esse legado. O Teatro de Contêiner é todo pautado no afeto em meio à realidade extremamente agressiva de São Paulo. Mesmo próximo à Cracolândia, o espaço atrai crianças de diversas classes sociais, que brincam no chão de terra na parte de fora do teatro, correndo entre os barris coloridos que integram a decoração externa, a sensação é de estar em uma casa onde mora uma família enorme. A horta, que fica localizada na parte lateral da construção e pode ser utilizada por quem se interessar, dá um ar de sítio de avós para o ambiente.

Rafael de Souza costuma frequentar o local com os amigos e diz gostar da variedade de atrações com preços acessíveis, porém percebe que ainda assim, há pouca a inclusão de moradores do entorno da construção. “A gente percebe que algumas pessoas ficam curiosas quando passam aqui em frente, mas não se sentem confortáveis para entrar. Poderia ter uma placa indicando que é um teatro e que todos são bem-vindos”.

“É um portão aberto, é uma relação direta com todo mundo e não é voltado para um segmento único da cidade, falo isso porque como ele tem uma

arquitetura cool, é muito fácil elitizá-lo. A gente faz de tudo para que isso não aconteça, para vir o pobre, o rico...”, diz Marcos. A casa não apresenta apenas espetáculos de teatro, lá também são feitas exposições fotográficas, show de música e projeção de filmes na parede externa de um dos contêineres. Grande parte dos eventos é gratuita e as apresentações custam no máximo R$30 reais. Mas a inovação do teatro alternativo atual não fica apenas em sua forma física, está também na forma de fazê-lo. Wellington Andrade, bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio, crítico de teatro e editor da Revista Cult, acredita que atualmente os atores saem da academia com uma percepção diferente do teatro: “eles saem com a perspectiva de estudar ou praticar a performatividade da interpretação, diferentemente de modelos antigos em que os atores estudavam a história do teatro, o realismo e as escolas clássicas de interpretação”. Na visão cítico, atualmente, o que se sobressai no ensino de interpretação é a ideia de que o corpo do ator é um grande mediador entre a dramaturgia que é coletiva e o entendimento da plateia.

 

Porém, a situação do teatro e da cultura em si no Brasil é preocupante, segundo Wellington, o panorama cultural brasileiro é quase que indigente. “Tem um desmonte da cultura, no teatro especialmente, o teatro aqui em São Paulo, por exemplo, tem muita oferta de espetáculos, mas muitas vezes não tem público correspondente”. Para o crítico, o público precisa passar por uma reeducação, pois grande parte dele se acostumou a assistir apenas a espetáculos de massa, como stand up comedy.

FALL 2023

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O Acesso Cênico Entra

em Cena

O teatro acessível no auge de sua vertente abrange a arte para todos

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Por Marta Miranda Aragão
e Fabiano Campos

O teatro nos transporta para um mundo mágico, onde nos tornamos parte de uma história e nos identificamos com personagens e seus adereços. A história se mistura com nossa realidade ou sonhos, e personagens dão vida àquilo que queremos ser ou que acreditamos – e isso nos torna completamente únicos e especiais como seres humanos em constante evolução.

A cortina abre e o espetáculo surge; plateias atentas aos sons, imagens e imaginários. Mas existem plateias que despertam outros sentidos e vivenciam à sua maneira essa obra tão peculiar.

Quando pensamos em arte, o limite não existe e o real e imaginário caminham juntos. Podemos apenas escutar, sem ver? Ver e não ouvir o som? Como tudo isso leva espectadores com deficiência a vivenciar essa arte tão antiga e que desperta a atenção de todos?

A acessibilidade possibilita que pessoas com deficiência vivenciem de forma plena o conteúdo e a emoção que nos é brindado pelos espetáculos teatrais.

Em 19 de setembro, comemora-se o Dia do Teatro Acessível, Lei 13.442/2017 aprovada pelo Senado Federal em abril de 2017. O objetivo é ajudar a divulgar a cultura por meio de atividades cênicas que ofereçam práticas de acessibilidade a pessoas com deficiência. Esse dia é marcado, também, pela Lei de Acessibilidade, que mobiliza peças e companhias de teatros a receberem esse recurso.

A acessibilidade é fundamental para que os espetáculos teatrais sejam, de fato, para todas as pessoas. Ter recursos e meios como o Intérprete de Libras, a legenda, a audiodescrição, reserva de lugares para quem tem deficiência ou mobilidade reduzida e programação em braile e em meio digital, permitem que

espectadores com deficiência também exerçam o direito à cultura.

De acordo com o censo de 2010 realizado pelo Instituto de Geografia e Estatística (IBGE), aproximadamente 24% da população brasileira possui alguma deficiência – o que representa 45,6 milhões de pessoas. A deficiência visual atinge 18,8% da população, sendo que, em seguida, vêm as deficiências motoras (7%), auditiva (5,1%) e intelectual (1,4%).

Em comemoração ao Dia Nacional do Teatro Acessível, a peça “Os Inclusos e Os Sisos” foi apresentada no teatro Cacilda Becker em São Paulo com oito recursos de acessibilidade.

No evento – que contou com a participação de Carolina Godinho (diretora do grupo), o jornalista Luiz Carlos Lopes (secretário adjunto na Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência), Silvana Gimenes (Assessoria de Cultura para Gêneros e Etnias da Secretaria da Cultura) e, mediando a mesa, Isabel Bell – foi discutida a importância da cultura na vida de todos e como a falta de acessibilidade impede pessoas com deficiência, principalmente comunicacional, de acessá-la.

A peça da companhia “Os Inclusos e os Sisos” reuniu esquetes bem-humorados com situações baseadas no cotidiano real de pessoas pertencentes a minorias (negros, LGBTT e pessoas com deficiência), buscando questionar preconceitos existentes na sociedade.O Assessor da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência de São Paulo, Sidney Tobias – que é deficiente visual – frequenta o teatro aproximadamente uma vez a cada dois meses e afirma que a acessibilidade comunicacional na cidade de São Paulo vem aumentando. Espaços como o Teatro Sergio Cardoso, Itaú Cultural, Sesc e o Centro Cultural do

Banco do Brasil já oferecem esse suporte em algumas peças, mas atenta para alguns problemas: normalmente, quando um espetáculo tem uma procura muito grande, horários com recursos de acessibilidade são colocados no meio da semana, quando a maioria das pessoas está trabalhando.

Paula Ferrari, cadeirante e que atua como Assessora Técnica da mesma Secretaria, critica o fato de que a maioria dos estabelecimentos reserva lugares específicos para cadeirantes, não dando direito de escolha para essas pessoas. “Normalmente, esses lugares se encontram na primeira fileira, o que, para alguns cadeirantes, dificulta a visualização do espetáculo e muitos não gostam de assistir em suas próprias cadeiras, preferem sentar nas poltronas do teatro, mas às vezes não existe essa possibilidade”, enfatiza.

O Ser Acessível

A Gambiart conversou com importantes personagens que contribuem com a acessibilidade no teatro informando dados essenciais para a construção e a efetivação do teatro para todos. Confira, a seguir, um bate papo exclusivo com pessoas com e sem deficiências que são profissionais e espectadores que transitam na arte cênica acessível.

Lívia Motta – Audiodescritora (Ver com Palavras)

Lívia Maria Villela de Mello Motta é audiodescritora com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela PUC de São Paulo. Coordenou o primeiro curso de especialização em audiodescrição pela Universidade Federal de Juiz de Fora – MG. Organizou com Paulo Romeu Filho o primeiro livro brasileiro sobre o tema: Audiodescrição: Transformando Imagens em Palavras, além de outras publicações.

Gambiart: Conte um pouco do seu trabalho, sua trajetória e carreira?

Lívia Motta: Sou audiodescritora desde 2004 e comecei a trabalhar com pessoas cegas em 1999, fazendo um trabalho voluntário na Instituição Lara Mara, ensinando inglês para pessoas cegas e com baixa visão. Na época, era coordenadora de uma escola de inglês – a Wazigi – e queria muito fazer um trabalho voluntário. Foi quando recebi uma ligação dessa instituição pedindo uma contribuição para uma campanha. Levei o método da escola para lá e digitava os livros para que pudessem imprimir em braile. A experiência foi muito interessante, pois nunca tinha trabalhado com pessoas com deficiência visual e comecei a desconstruir muitas coisas que pensava a respeito. No ano seguinte, fui fazer doutorado, abordando o ensino e aprendizagem de inglês para alunos cegos e com baixa visão. Já tinha feito mestrado de linguística aplicada e estudos da linguagem na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) sobre formação de professores de inglês. Durante o doutorado, fiz um intercâmbio na Universidade de Birmingham, no Reino Unido, e foi lá que conheci a audiodescrição. Trouxe para o Brasil alguns materiais e comecei a pesquisar; aqui já se falavam algumas coisas, principalmente por conta da novela América (Rede Globo, 2005) que tinha um personagem cego, o Jatobá (Marcos Frota). Um grupo de cegos se organizou e escreveu uma carta aberta à Rede Globo, falando pela primeira vez sobre a audiodescrição. Nesse mesmo ano, desenvolvi um projeto para o Instituto Vivo – no qual atuei por 6 anos como coordenadora – que contemplava acessibilidade no teatro e comecei efetivamente a audiodescrição com uma peça chamada O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna. Lá no Instituto Vivo, eu preparava os funcionários que eram voluntários desse projeto para serem audiodescritores. A Vivo teve uma importância muito grande na implementação da audiodescrição no Brasil, levando esse projeto para vários estados brasileiros, sendo o primeiro a exibir uma peça – O Andaime – no circuito comercial com audiodescrição.

Gambiart: Pensando nas peças teatrais, como é feito esse trabalho na pratica?

Lívia Motta: Quando somos contratados para fazer uma peça teatral, precisamos receber todo o material, como textos da peça, vídeo da peça na íntegra, o release e o flayer, e quando possível, assistimos os ensaios ou a apresentação da peça. Precisamos transformar esse material de divulgação em material acessível, para que chegue até o público alvo. A maioria dos sites não possui uma ferramenta de acessibilidade, ou essas pessoas não têm contato com a mídia impressa. Por isso, temos um canal específico de divulgação, através das redes sociais, do nosso blog, nosso mailing e WhatsApp, que atinge um público bem significativo. Para selecionar o que será descrito, vamos inserindo essas informações visuais nos intervalos, dependendo do espaço entre as falas dos personagens, por exemplo: a entrada e saída dos personagens em cena, a mudança de cenário, a mudança do figurino e toda a parte de descrição física dos personagens fazemos nas notas introdutórias. Quando o público-alvo entra no teatro, antes do início da peça, já fazemos as notas introdutórias – que são a sinopse, a caracterização, o cenário e o figurino. Durante o espetáculo, vamos inserindo essas unidades narrativas entre as falas e as ações que fazem no ato. Uma vez que o roteiro está pronto, é feito uma revisão e realizado uma consultoria por uma pessoa com deficiência visual que tem conhecimento sobre audiodescrição. Isso é muito importante, porque essa pessoa vai nos dizer se as informações estão claras ou se há necessidade de acrescentar algo para que a audiodescrição fique compreensível. Temos várias funções, como audiodescritor roteirista, que elabora o roteiro; o audiodescritor narrador, que pode ser a mesma pessoa que fez o roteiro, mas precisa ter qualidade vocal e clareza na emissão das palavras; o audiodescritor consultor e um profissional que receba a pessoa com deficiência visual no teatro para acompanhar em seus lugares, ajudar na distribuição dos equipamentos e ficar atento a um possível defeito, se há necessidade de troca, entre outras possíveis ocorrências.

Camila Nunes – Intérprete de Libras e Professora

Camila Nunes da Silva possui graduação em Pedagogia, pós-graduação latu sensu em Educação Especial e Deficiência Auditiva e também em Libras e Educação para Surdos. Atua no Instituto Singularidades e é professora da rede municipal da cidade de São Paulo. Transita principalmente nos seguintes temas: acessibilidade, teatro e Libras.

Gambiart: Sendo atriz e intérprete de Libras incorporada numa companhia de teatro, como foi o processo para participação dentro do grupo?

Camila Nunes: Na oficina dos Menestréis, eles ministram cursos para profissionais de todas as áreas e todas as pessoas que participam não necessariamente são atores profissionais. Minha posição lá no palco era de exercitar meu lado artístico e não como atriz profissional, embora eu tenha feito algumas peças participando do elenco. Em uma peça chamada a Mansão de Miss Jane, havia um aluno surdo no elenco, que solicitou ao diretor um intérprete de Libras. Nesse mesmo período, tinha outra peça que fui assistir com uma amiga surda, e na plateia, intérprete em Libras para ela. Esse diretor viu e veio conversar comigo, explicando a situação, e me fez o convite para interpretar a peça que citei acima. Comecei a participar dos ensaios, que durou 2 meses e meio. Assim, eu captava questões como expressão facial e corporal, e buscava todos os elementos expressivos, como gestualidade e postura física. Debrucei sobre o texto e iniciei o processo de tradução, onde existiam piadas, poesias e contei com apoio de um surdo e de outro intérprete, fazendo esse trabalho em conjunto para tradução e interpretação. Relacionava o que estava fazendo no texto com o ritmo que estava sendo falado em cena pensando em todo o processo tradutório. Meu maior desafio quanto a atuação e a relação que estabeleço nas escolhas que são feitas com a produção e a direção, é compreender a importância e relevância desse trabalho, além de estabelecer um local para essa interpretação que seja possível e realmente acessível ao surdo que está assistindo.

Catharine Moreira – Atriz e poeta surda

Catharine Moreira é dançarina, performer e poeta surda, graduada em Engenharia.

Gambiart: Como atriz surda, como tem sido o desafio de atuar com ouvintes?

Catharine Moreira: Um dos meus maiores desafios foi no teste que realizei com atores ouvintes, pois a maioria não sabe se comunicar em Libras. Como qualquer atriz, recebi os textos do teste e precisei decorar e ensaiar para apresentação. Em Curitiba, no Paraná, participei de uma audição em que estava o diretor, uma atriz e uma intérprete que acompanhou e ajudou na avaliação. Como o diretor não sabia Libras, interpretei o texto na língua de sinais e a intérprete fez minha voz. Nesse dia, participaram 30 surdas e havia apenas uma vaga para atuação, na qual fui a escolhida. Comecei a participar dos ensaios e em seguida, fizemos uma apresentação no Festival de Teatro de Curitiba e eu era a única atriz surda presente, fiquei muito feliz em participar e vencer esse desafio. No dia da apresentação, a plateia na sua maioria era composta por ouvintes e foi incrível a receptividade de todos.

Gambiart: Conte-nos um pouco do desafio de transitar nessa arte que é o teatro?

Catharine Moreira: Esse processo foi bem lento, é como se existissem dois caminhos na minha vida. Desde criança sempre quis ser atriz; durante 10 anos eu dancei ballet, jazz e já gostava de arte. Sou formada em Engenharia, escolhi essa área por conta da matemática, que sempre gostei, e achava que a arte cênica, na época, não daria certo por conta das barreiras e dificuldades – não tinha acessibilidade e nem conhecia surdos que faziam algo do tipo. Trabalhei durante 8 anos na área de engenharia, mas faltava algo. Depois, fiquei um período desempregada e fui atrás de novas oportunidades. Foi quando entrei no Slam do Corpo, um concurso de poesia onde surdos e ouvintes participam, e ganhei várias batalhas de poesias. Nesse mesmo tempo, eu entrei numa oficina de teatro para aprender mais e fiz o curso. Continuei nessa busca, realizando testes de teatro e participando das batalhas de poesias. Hoje, tenho outra mentalidade e o teatro contribuiu para quem eu sou e com certeza amo o que faço e pretendo continuar.

Sara Bentes – Atriz, cantora e compositora cega

Sara Letícia Bentes é atriz, cantora, compositora, dançarina e autora. Já participou de importantes festivais musicais em Córdoba, na Argentina, e nos Estados Unidos, fez parte da Companhia de Teatro dos Menestréis e atualmente atua no Teatro Cego – já com três peças em seu currículo. Já lançou álbuns como cantora e alguns livros de sua autoria.

Gambiart: Conte-nos um pouco de sua trajetória no teatro.Sara Bentes: Desde muito pequena, já sabia que queria ser atriz e cantora. Logo com 10 e 11 anos, busquei curso livres

de teatro aqui na cidade de Volta Redonda, no interior do Rio de Janeiro, onde nasci e cresci. Quando era adolescente, ouvi muito não, ou quando aceitavam, de fato não era incluída. Tinham receio ou super proteção – nas aulas todos corriam pelo palco e eu não podia correr como todos e não sabiam lidar com minha deficiência. Já com 23 anos de idade, num curso de teatro no Sesc de Barra Mansa (cidade vizinha de onde moro), tive um professor bem sensível. Numa dinâmica com esse professor, num papel ele escreveu com letras grandes uma frase, já que nessa época eu tinha baixa visão, onde pude participar e ler como todos os alunos do curso – isso foi apenas um exemplo que fez toda a diferença.

Com 28 anos de idade, eu entrei numa companhia de teatro que já promovia a inclusão: o grupo dos Menestréis. Tive uma necessidade de adaptação maior – antes, eu tinha baixa visão e conseguia andar no palco e ver os cantos do palco, por exemplo, e depois, sem visão nenhuma, o desafio foi maior. Lá nos Menestréis, foi o primeiro palco que pisei que tinha o piso tátil já instalado e isso me deu segurança para transitar, onde de fato me senti incluída e mais segura, já que na companhia existiam outras pessoas com deficiências para compor esse grupo misto. Nos Menestréis, era aluna e já atuava nas peças promovidas por eles. O Deto Montenegro foi o primeiro diretor que me incentivou e ajudou como atriz. Em seguida, entrei para o teatro cego, também como atriz profissional.

Gambiart: Como é fazer o teatro cego? Processo, ensaios e atuação?

Sara Bentes: Entrei no teatro cego em 2012, foi o primeiro teste para elenco que fiz como atriz profissional e isso foi muito marcante. Pois os atores cegos têm poucas oportunidades, e no teatro convencional só fazemos papéis de personagens cegos. Já no teatro cego, estamos em condições de igualdade com qualquer ator e com a plateia, pois são peças no escuro e podemos fazer qualquer personagem. Acho a ideia muito interessante e fiquei muito feliz quando fui chamada para o teste. Fui bastante nervosa e decorei o texto que enviaram e fiquei surpresa quando passei. Foi um divisor de águas na minha carreira, pois foi o trabalho como atriz melhor remunerado. Fiz três peças, a primeira foi O Grande Viúvo, de Nelson Rodrigues; a segunda foi Acorda Amor, que faço a personagem principal e o texto é de Paulo Palado; e a terceira, Clarear, que é um texto meu. Foi uma grande experiência, pois foi meu primeiro texto que entrou em cartaz no teatro, onde pude atuar também como atriz. Com a peça Clarear, promovemos um bate papo no escuro após a peça, pois é um texto que traz a discussão da deficiência e inclusão. O projeto Teatro Cego vem crescendo e é bem novo para o diretor, todos da produção e os atores que enxergam, que passam por uma imersão nesse universo da pessoa cega. Eu só acredito nessa inclusão que vem da mistura de pessoas com e sem deficiência. Percebo que todos foram crescendo e aprofundando a relação com a deficiência visual e hoje, por exemplo, brincadeiras que fazemos tornam-se comuns e naturais entre o elenco cego e vidente. Atuar no escuro, para mim, é muito confortável, com desafios da atuação, muito texto para decorar e estar presente e atenta a peça toda. Por outro lado, pensando no teatro convencional, tem o piso tátil que nos auxilia e dá autonomia para andar no palco. Outro ponto interessante de falar, é que o ator cego não tem esse contato visual com a plateia e isso precisa ser compreendido com os demais diretores.

Gambiart: O que acha do recurso de audiodescrição nas peças teatrais?

Sara Bentes: Enquanto espectadora, estou sentada na plateia e está tudo escuro, recebendo os sons e as falas – mas existem cenas que não possuem falas, fico alheia tudo àquilo que acontece. Se estou na plateia e tenho o fone de ouvido descrevendo tudo que está acontecendo que meus olhos não veem e depois ainda posso tocar no cenário e figurinos, aí sim consigo enxergar através dos outros sentidos e construir as imagens na minha mente e assim tudo fica completo. É fundamental a audiodescrição e o tour tátil para conhecer o cenário antes ou após a peça; se possível, conhecer os figurinos. É bonito ver como atores videntes se comportam, vou dar um exemplo de um ator e amigo: o Leonardo Santiago, que atua no teatro cego e foi sensibilizando com os atores cegos. Quando fui assistir uma peça dele, no teatro convencional, não tinha audiodescrição. No final, quando fui conversar com ele, Leonardo fez questão de mostrar o figurino que seu personagem usava, então, isso é uma sensibilidade que foi desenvolvida a partir do convívio.

Encerra-se o espetáculo. Em pé, o público aplaude – alguns, sonoros; outros, sem sons. No fone, a descrição do singelo agradecimento. Personagens saem de cena, a cortina se fecha e o público se despede com leveza. Olhares se encontram, mãos se comunicam, rodas transitam, bengalas tateiam; o cão-guia retorna ao trabalho, satisfeito. No final, o teatro é para todos, a arte é universal – e as pessoas são todas iguais, apesar das diferenças.

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